Posted: 11 Jul 2010 04:45 PM PDT
Fonte: O Estado de S.Paulo
John Honerman
Após um desempenho medíocre da seleção majoritariamente negra na Copa do Mundo, o relacionamento complicado entre raça e esporte ressurgiu no debate público
Filed under: Opinião
John Honerman
Após um desempenho medíocre da seleção majoritariamente negra na Copa do Mundo, o relacionamento complicado entre raça e esporte ressurgiu no debate público
Em agosto de 1936, pouco depois de o astro corredor afro-americano Jesse Owens conquistar quatro sensacionais medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de Berlim, o editor da principal revista de esportes francesa L”Auto apelou às autoridades coloniais francesas que encontrassem e recrutassem negros africanos atleticamente talentosos que fossem capazes de “representar a raça francesa de maneira digna” em competições internacionais. Os corredores e arremessadores franceses haviam tido um triste desempenho em Berlim, e seus fracassos ante os olhos do mundo foram considerados uma humilhação para a França.
Por conseguinte, em 3 de dezembro de 1937, um grupo de pesquisa patrocinado pela revista zarpou de Bordeaux numa missão de estudo do potencial atlético dos habitantes da África Ocidental Francesa. Esses missionários esportivos acabaram chegando no Senegal e foram recebidos pelas autoridades coloniais.
O resultado desse garimpo de talentos foi a descoberta de que os exploradores haviam se equivocado completamente sobre a relação entre esporte e seus súditos coloniais. Os africanos, diferentemente de seus congêneres afro-americanos, mostraram pouca aptidão para esportes.
Ao contrário, essas pessoas empobrecidas e subnutridas precisavam do esporte como terapia para recuperar sua saúde. A busca de crianças que pudessem ser futuros atletas foi abandonada.
Meio século depois, agentes e treinadores europeus ainda estão à espreita de talentos negros para enriquecer com eles. E como bem atesta o elenco com uma maioria de africanos que a França escalou para a Copa do Mundo deste ano, muitos foram bem-sucedidos.
Mas, após um desempenho medíocre que despachou a França para casa após a primeira fase em meio a uma série de escândalos e acusações, o relacionamento complicado entre raça e esportes ressurgiu no discurso público de uma maneira muito feia.
O desabono dos atletas da África do Norte e subsaariana da França foi um tema favorito da extrema direita francesa durante anos. Jean-Marie Le Pen, o fundador da racista Frente Nacional, declarou em 1996 que a seleção de futebol francesa era inaceitável do ponto de vista patriótico pelo número de “estrangeiros” – entenda-se, cidadãos não-brancos – que fora escolhido para representar a França. A recusa de alguns jogadores em cantar o hino nacional tornou-se um assunto delicado que persiste até hoje.
Mas, depois do desafio da seleção francesa majoritariamente negra a seus líderes brancos na África do Sul, a crítica racista de Le Pen ao esporte multirracial entrou na política dominante francesa com uma vingança.
Foi a ministra francesa da Saúde e dos Esportes, Roselyne Bachelot – que não é nenhuma figura marginal – quem recentemente chamou os jogadores mais antigos de “líderes de gangue” que estavam tiranizando os “garotos assustados” na seleção nacional.
Durante os anos 90, era apenas a extrema direita francesa que ridicularizava a ideia de que o esporte multirracial poderia facilitar a integração racial na França. Agora, o escárnio dirigido contra a indisciplina de uma seleção “negra” e o fracasso implícito do papel integrador do esporte na sociedade francesa impregnam todo o espectro político.
Pouco importa que Domenech seja considerado universalmente um palhaço incompetente. O choque psicopolítico do escândalo causou um coro extraordinário e quase unânime de críticas e ofensas da classe política francesa.
“Será que isso não vai manchar a imagem da França?”, perguntou o chanceler francês Bernard Kouchner. “Como os jovens vão respeitar seus professores quando veem Anelka insultando seu treinador?”, questionou a ministra da Educação Superior, Valérie Pécresse.
O fato de a seleção francesa ter se tornado um símbolo das divisões da sociedade é particularmente infeliz, já que, em 1998, a seleção vencedora da Copa do Mundo na França foi enaltecida como a realização da política oficial francesa de integração étnica e racial.
Zinedine Zidane, filho de pais argelinos, desempenhou papéis de astro seja como atleta seja como cidadão exemplar que parecia encarnar o sucesso do modelo francês de integração étnica. Essa doutrina desencorajava o multiculturalismo em favor da doutrina de que a cor da pele e a etnia não têm nada a ver com a cidadania francesa.
Imunidade. Por paradoxal que pareça, o triunfo daqueles “black-blanc-beur” (atletas negros, brancos e norte-africanos) foi saudado como um sinal de que a sociedade francesa era imune a divisões multiculturais. A euforia nacional resultante foi abraçada como uma bem-vinda trégua das persistentes ansiedades da França com as consequências sociais e culturais da imigração em larga escala e a disseminação de populações muçulmanas pela Europa Ocidental.
A derrocada no atual Mundial desfez as fantasias utópicas de 1998 de maneira espetacular. Para Nicolas Sarkozy, o comportamento inconveniente desses franceses racialmente marginais deve ter trazido recordações traumáticas dos tumultos extremamente destrutivos e prolongados provocados por jovens imigrantes norte-africanos nos desolados conjuntos habitacionais no norte de Paris em 2005.
Não é de surpreender que análises retrospectivas dos preparativos para a Copa do Mundo encontraram descuidos e subterfúgios chocantes para reclamar.
Muitos cidadãos foram ambíguos sobre a própria presença no Mundial porque todos sabiam que a seleção avançara para a África do Sul com uma clara violação das regras – a mão na bola de Henry que levou ao gol vencedor num jogo das eliminatórias contra a Irlanda. O fato de os guardiães do futebol francês terem permitido essa vantagem injusta para defender seus interesses lembrou alguns franceses do que Galichet chamou de “o extraordinário e abismal fracasso das elites francesas para administrar qualquer sorte de empreendimento coletivo”. Consequentemente, o fracasso a seleção “negra” da França fez o sucesso da integração multirracial parecer superficial.
A enorme ressonância na mídia do escândalo francês também aponta para seu significado simbólico para a Europa Ocidental como um todo. Na verdade, a onipresença e severidade das tensões étnicas e religiosas nos Estados de bem-estar prósperos da União Europeia tornaram-se uma parte integrante da condição europeia.
Ironicamente, embora tenha sido a performance de um corredor afro-americano nos Jogos Olímpicos de 1936 (durante o nazismo) que inspiraram a primeira investida da França no multiculturalismo atlético, o país que mais bem o exemplifica hoje pode ser o anfitrião olímpico daquele ano: a Alemanha. Nunca antes tantos membros da seleção alemã foram de descendência estrangeira – de famílias imigrantes, de famílias com um dos pais alemão, ou filhos de alemães um dia exilados no Leste Europeu. Como seus vizinhos europeus, a Alemanha vive sob intensa pressão para integrar seus imigrantes – turcos e muçulmanos em particular. Embora a matança de estrangeiros por skinheads seja coisa do passado, as controvérsias sobre desemprego, escolas multi-linguísticas, construção de mesquitas e baixa mobilidade social continuam cozinhando em fogo baixo. / Tradução de Celso M. Paciornik
John Hoberman é professor de Estudos Germânicos na Universidade do Texas, em Austin.
Por conseguinte, em 3 de dezembro de 1937, um grupo de pesquisa patrocinado pela revista zarpou de Bordeaux numa missão de estudo do potencial atlético dos habitantes da África Ocidental Francesa. Esses missionários esportivos acabaram chegando no Senegal e foram recebidos pelas autoridades coloniais.
O resultado desse garimpo de talentos foi a descoberta de que os exploradores haviam se equivocado completamente sobre a relação entre esporte e seus súditos coloniais. Os africanos, diferentemente de seus congêneres afro-americanos, mostraram pouca aptidão para esportes.
Ao contrário, essas pessoas empobrecidas e subnutridas precisavam do esporte como terapia para recuperar sua saúde. A busca de crianças que pudessem ser futuros atletas foi abandonada.
Meio século depois, agentes e treinadores europeus ainda estão à espreita de talentos negros para enriquecer com eles. E como bem atesta o elenco com uma maioria de africanos que a França escalou para a Copa do Mundo deste ano, muitos foram bem-sucedidos.
Mas, após um desempenho medíocre que despachou a França para casa após a primeira fase em meio a uma série de escândalos e acusações, o relacionamento complicado entre raça e esportes ressurgiu no discurso público de uma maneira muito feia.
O desabono dos atletas da África do Norte e subsaariana da França foi um tema favorito da extrema direita francesa durante anos. Jean-Marie Le Pen, o fundador da racista Frente Nacional, declarou em 1996 que a seleção de futebol francesa era inaceitável do ponto de vista patriótico pelo número de “estrangeiros” – entenda-se, cidadãos não-brancos – que fora escolhido para representar a França. A recusa de alguns jogadores em cantar o hino nacional tornou-se um assunto delicado que persiste até hoje.
Mas, depois do desafio da seleção francesa majoritariamente negra a seus líderes brancos na África do Sul, a crítica racista de Le Pen ao esporte multirracial entrou na política dominante francesa com uma vingança.
Foi a ministra francesa da Saúde e dos Esportes, Roselyne Bachelot – que não é nenhuma figura marginal – quem recentemente chamou os jogadores mais antigos de “líderes de gangue” que estavam tiranizando os “garotos assustados” na seleção nacional.
Durante os anos 90, era apenas a extrema direita francesa que ridicularizava a ideia de que o esporte multirracial poderia facilitar a integração racial na França. Agora, o escárnio dirigido contra a indisciplina de uma seleção “negra” e o fracasso implícito do papel integrador do esporte na sociedade francesa impregnam todo o espectro político.
Pouco importa que Domenech seja considerado universalmente um palhaço incompetente. O choque psicopolítico do escândalo causou um coro extraordinário e quase unânime de críticas e ofensas da classe política francesa.
“Será que isso não vai manchar a imagem da França?”, perguntou o chanceler francês Bernard Kouchner. “Como os jovens vão respeitar seus professores quando veem Anelka insultando seu treinador?”, questionou a ministra da Educação Superior, Valérie Pécresse.
O fato de a seleção francesa ter se tornado um símbolo das divisões da sociedade é particularmente infeliz, já que, em 1998, a seleção vencedora da Copa do Mundo na França foi enaltecida como a realização da política oficial francesa de integração étnica e racial.
Zinedine Zidane, filho de pais argelinos, desempenhou papéis de astro seja como atleta seja como cidadão exemplar que parecia encarnar o sucesso do modelo francês de integração étnica. Essa doutrina desencorajava o multiculturalismo em favor da doutrina de que a cor da pele e a etnia não têm nada a ver com a cidadania francesa.
Imunidade. Por paradoxal que pareça, o triunfo daqueles “black-blanc-beur” (atletas negros, brancos e norte-africanos) foi saudado como um sinal de que a sociedade francesa era imune a divisões multiculturais. A euforia nacional resultante foi abraçada como uma bem-vinda trégua das persistentes ansiedades da França com as consequências sociais e culturais da imigração em larga escala e a disseminação de populações muçulmanas pela Europa Ocidental.
A derrocada no atual Mundial desfez as fantasias utópicas de 1998 de maneira espetacular. Para Nicolas Sarkozy, o comportamento inconveniente desses franceses racialmente marginais deve ter trazido recordações traumáticas dos tumultos extremamente destrutivos e prolongados provocados por jovens imigrantes norte-africanos nos desolados conjuntos habitacionais no norte de Paris em 2005.
Não é de surpreender que análises retrospectivas dos preparativos para a Copa do Mundo encontraram descuidos e subterfúgios chocantes para reclamar.
Muitos cidadãos foram ambíguos sobre a própria presença no Mundial porque todos sabiam que a seleção avançara para a África do Sul com uma clara violação das regras – a mão na bola de Henry que levou ao gol vencedor num jogo das eliminatórias contra a Irlanda. O fato de os guardiães do futebol francês terem permitido essa vantagem injusta para defender seus interesses lembrou alguns franceses do que Galichet chamou de “o extraordinário e abismal fracasso das elites francesas para administrar qualquer sorte de empreendimento coletivo”. Consequentemente, o fracasso a seleção “negra” da França fez o sucesso da integração multirracial parecer superficial.
A enorme ressonância na mídia do escândalo francês também aponta para seu significado simbólico para a Europa Ocidental como um todo. Na verdade, a onipresença e severidade das tensões étnicas e religiosas nos Estados de bem-estar prósperos da União Europeia tornaram-se uma parte integrante da condição europeia.
Ironicamente, embora tenha sido a performance de um corredor afro-americano nos Jogos Olímpicos de 1936 (durante o nazismo) que inspiraram a primeira investida da França no multiculturalismo atlético, o país que mais bem o exemplifica hoje pode ser o anfitrião olímpico daquele ano: a Alemanha. Nunca antes tantos membros da seleção alemã foram de descendência estrangeira – de famílias imigrantes, de famílias com um dos pais alemão, ou filhos de alemães um dia exilados no Leste Europeu. Como seus vizinhos europeus, a Alemanha vive sob intensa pressão para integrar seus imigrantes – turcos e muçulmanos em particular. Embora a matança de estrangeiros por skinheads seja coisa do passado, as controvérsias sobre desemprego, escolas multi-linguísticas, construção de mesquitas e baixa mobilidade social continuam cozinhando em fogo baixo. / Tradução de Celso M. Paciornik
John Hoberman é professor de Estudos Germânicos na Universidade do Texas, em Austin.
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Posted: 10 Jul 2010 06:23 PM PDT
Fonte: Terra
Solly Boussidan
Direto de Belgrado, na Sérvia
É difícil para um estrangeiro que caminha pelas ruas de Belgrado hoje em dia ter a dimensão dos eventos que assolaram os Bálcãs nas últimas duas décadas. As ruas arborizadas e as pessoas sorridentes que lotam os cafés e bares espalhados por amplos calçadões da cidade não condizem com a imagem de uma nação emergida das cinzas de uma guerra que deixou milhares de mortos, no pior capítulo da história europeia desde a Segunda Guerra Mundial.
Muitos sérvios gostariam de poder esquecer os horrores dos conflitos que marcaram a desintegração da antiga Iugoslávia na década de 90. A guerra que opôs etnias irmãs – Iugoslávia é sinônimo de “terra dos eslavos do sul” – foi trágica para todos os lados do conflito. Os sérvios eram a etnia dominante dentro da federação e além de constituírem a maior parte da população da Sérvia, eram também minorias significativas na Croácia, Bósnia Herzegovina, Eslovênia e no Kosovo.
A Sérvia se ressentia da perda de influência e poder dentro da federação e, com a Iugoslávia liderada por Slobodan Milosevic, abraçou a ideia da “Grande Sérvia”, na qual teriam seu prestígio e poder renovados, enquanto as minorias sérvias nas outras repúblicas iugoslavas teriam sua autonomia ou independência garantidas. Mágoas entre sérvios, croatas e bósnio-albaneses que datavam desde a Segunda Guerra Mundial, quando os croatas corroboraram com nazistas e enviaram milhares de servo-croatas para campos de extermínio ainda eram motivo de grande animosidade entre as diversas etnias.
O exército iugoslavo, comandado principalmente por Sérvios, foi logo de início o instrumento do governo federal na tentativa de evitar a separação da Eslovênia e da Croácia. Enquanto a guerra escalava na Croácia, as rivalidades entre mulçumanos bósnio-albaneses e cristãos-ortodoxos sérvios na Bósnia Herzegovina crescia exponencialmente.
A minoria étnica sérvia queria permanecer parte da federação iugoslava juntamente com a Sérvia. A maioria muçulmana da Bósnia queria a independência do país. Os sérvios declararam a independência de seus enclaves dentro da Bósnia e formaram grupos paramilitares – o maior e mais importante deles era o Exército Sérvio da Bósnia (VRS), liderado pelo general Ratko Mladic. Para garantir a integridade territorial da etnia sérvia na Bósnia, o VRS iniciou uma campanha de limpeza étnica dos bósnio-albaneses, que culminou em 11 de julho de 1995 no massacre de Srebrenica, na qual mais de 8 mil pessoas foram assassinadas. Em um período de menos de duas semanas, cerca de 30 mil refugiados foram mortos nesta região, no maior assassinato em massa ocorrido na Europa desde a segunda guerra mundial, em uma ação oficialmente reconhecida pelo Tribunal Internacional Criminal da Ex-Iugoslávia (ICTY) como um genocídio.
Srebrenica havia sido declarada pela ONU antes do massacre como uma área segura para refugiados e estava patrulhada por forças de proteção das Nações Unidas (Unprofor), que contavam com um contingente de 400 soldados holandeses armados. O ICTY determinou que o contingente holandês não fez nada para impedir os massacres e que a República Sérvia também foi conivente com o genocídio ao se omitir e não utilizar sua influência para controlar a etnia sérvia na Bósnia.
Democracia e feridas de guerra
As quase duas décadas que transcorreram desde o início da desintegração da Iugoslávia obviamente trouxeram progresso na consolidação e avanço da democracia na Sérvia. A imprensa oficial da época e o forte controle exercido sobre a imprensa livre e cidadãos que se opunham às políticas do governo da ex-Iugoslávia ou às ações dos sérvios em outras partes da federação, deram lugar a uma sociedade pluralista, onde, apesar das dificuldades, vozes dissidentes têm direito de se expressar e um grande número de organizações não governamentais (ONGs) trabalham para esclarecer os fatos ainda obscuros da guerra, punir os responsáveis e fazer suas visões chegarem à sociedade e ao governo da Sérvia.
Este é o caso da ONG esquerdista “Mulheres de Negro”, que se autodenomina uma organização feminista, antimilitarista e pró-paz. Contando com cerca de duas dezenas de ativistas e escoltadas por batalhões antichoque da polícia da Sérvia, as Mulheres de Negro cobriram na última quarta-feira um dos principais calçadões da zona comercial central de Belgrado – uma área nobre e extremamente movimentada – com faixas e slogans pacifistas e milhares de sapatos doados por pessoas de todo o mundo em memória das vítimas de Srebrenica. A ideia era que houvesse um par de sapatos colocado ao longo do calçadão para cada uma das vítimas do massacre. Segundo a diretora da ONG, Stasa Zaiovic, “a demonstração é uma intervenção artística pró-paz para a conscientização da sociedade e do governo sérvio sobre suas responsabilidades na guerra e no genocídio que ocorreram na Bósnia”.
A manifestação atraiu grande número de pessoas e teve cobertura de destaque na imprensa sérvia. Após a colocação dos sapatos com os nomes das vítimas ao longo de faixas brancas, diversas mulheres vestidas em negro passaram a ler mensagens de paz enviadas de todo o mundo e a pedir para que os sérvios reconhecessem a culpa do país pela morte de milhares de civis. “Somente quando nosso governo reconhecer os erros que cometemos e a sociedade falar abertamente sobre este assunto, poderemos realmente cicatrizar as feridas e fazer justiça. Há ainda muito a ser feito e muitos criminosos de guerra para levarmos à justiça”, diz Zaiovic. O batalhão antichoque e diversos policiais à paisana presentes durante a demonstração eram numerosos o suficiente para chamar atenção e repelir qualquer tentativa de contra-protesto. “É um país livre e as pessoas têm direito a expressar suas opiniões. Este tipo de manifestação geralmente transcorre de forma tranquila, mas estamos aqui para garantir que estas mulheres não sejam ameaçadas”, disse um oficial da tropa antichoque que não tinha autorização para se identificar à imprensa.
O evento transcorreu sem incidentes até que manifestantes da ONG nacionalista, pró-sérvia e direitista denominada SBOR (Movimento Nacional Sérvio por Deus, pela Nação e pela Família) iniciaram uma contra-manifestação, citando fatos e números contrários aos dados oficialmente reconhecidos pela ONU. A guerra de megafones elevou os ânimos de manifestantes e de pessoas que acompanhavam a demonstração. Para evitar o risco de violência, policiais sem uniforme interromperam e prenderam um dos manifestantes do SBOR, levando-o para um interrogatório improvisado junto a entrada de um prédio próximo à manifestação.
“‘Isso é o que eles chamam de liberdade?’. Só os esquerdistas têm voz nesse país!”, bradava Nearat Coporda, um dos diretores da SBOR, inconformado com a prisão do colega. “O problema é que as pessoas têm medo de se declararem abertamente pró-sérvias e serem tachadas como racistas. Temos documentos em mãos que mostram que os sérvios na Bósnia não mataram civis e sim entre 1 mil e 2 mil guerrilheiros. Os sérvios mataram soldados. Agora porque ninguém diz nada sobre os sérvios mortos pelos muçulmanos?”
Segundo Coporda, há uma grande campanha de desinformação que visa a fortalecer as demais minorias de forma a apaziguar a região à custa dos sérvios.
“Soldados sérvios se entregaram e foram assassinados mesmo assim. Há fotos dos muçulmanos fazendo jogos com os restos mortais desses soldados. Os bósnios assassinaram civis sérvios e sua liderança até hoje possui ligação com grupos terroristas com a Al-Qaeda e o Hamas. Tudo isso constitui crimes de guerra, mas por que ninguém fala disso? Por que ninguém aceita ou quer ouvir sobre essas ligações”, indaga Nearat.
A realidade é que na sociedade sérvia, a guerra gerou traumas enormes e complexos. Os sérvios foram largamente responsabilizados pelos massacres e pelas guerras de desintegração da Iugoslávia, apesar de muitas das batalhas terem sido travadas pelas minorias étnicas sérvias presentes nas demais repúblicas iugoslavas e não diretamente pelos sérvios da República da Sérvia, apesar de diversos indícios de cooperação entre o país e organizações paramilitares sérvias. Pelas ruas de Belgrado, quando as guerras do passado viram assunto é comum escutar opiniões inconformadas de que os sérvios, aos olhos do mundo, são os bandidos genocidas e que este é o único país que não tem direito a defender seu povo.