Brasil negociou imunidade
a militares americanos
Natalia Viana, 22 de dezembro de 2010
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Durante anos, o governo americano pressionou o Brasil a assinar um acordo que garantia imunidade judicial a cidadãos americanos que estiverem no país, em especial um tipo de “blindagem” contra o alcance do Tribunal Penal Internacional (TPI).
Documentos revelados pelo WikiLeaks mostram que o governo brasileiro chegou a acenar com um acordo “informal” nesse sentido, mas depois recuou.
Mesmo assim, de fato, o Brasil permite uma “blindagem” legal a crimes cometidos por militares americanos em território nacional.
Soldados americanos não podem ser processados pela justiça brasileira se cometerem crimes dentro de navios ou aviões militares dos EUA, ou se cometerem crimes durante a realização de exercício militares.
Artigo 98
Entre 2003 e 2008, os Estados Unidos empreenderam uma forte campanha para blindar os seus cidadãos da jurisdição do Tribunal Penal Internacional em Haia, que EUA não reconhecem como legítimo.
Em 2003, o governo de George W Bush aprovou uma lei destinada a proteger seus militares de serem julgados por cortes internacionais. Com base no American Service Members Protection Act, o governo começou a pressionar diversos países a assinarem um acordo chamado Artigo 98, segundo o qual se comprometem a não extraditar cidadãos americanos ao TPI.
A pressão chegou até o Brasil.
“Os Estados Unidos têm responsabilidades globais que criam circunstâncias únicas”, defendeu a atual secretária de Estado americana, Hillary Clinton, em fevereiro de 2005, quando ainda era senadora. “Por exemplo, somos mais vulneráveis ao mau uso de uma corte criminal internacional por causa do papel internacional que temos e dos ressentimentos que surgem por causa da nossa presença ubíqua em todo o mundo”.
Pra quem não assinar, sanções
Embora a atual administração de Barack Obama seja menos radical na oposição ao Tribunal, o empenho do governo Bush garantiu imunidade a cidadãos americanos em mais de cem países através de acordos do Artigo 98 que continuam em vigor.
Outros países que não cederam sofreram sanções – desde cortes de financiamentos e treinamento às forças armadas até o fim de assistência econômica. Países como Mali, Namíbia, África do Sul, Tanzânia e Quênia, que rejeitaram publicamente o acordo em 2003, perderam milhões de dólares em auxílio para programas de desenvolvimento econômico.
O TPI tem investigado casos importantes no continente africano, incluindo massacres em Uganda, na República Democrática do Congo e no Sudão.
No Brasil, os EUA pressionaram ao acabar com uma subvenção que era dada para militares brasileiros para participar de cursos militares oferecidos pelas Forças Armadas daquele país, conforme um telegrama de março de 2004.
“Antes da imposição das sanções, o Ministério da Defesa brasileiro avisou que ia buscar treinamento militar e troca de oportunidades em outro lugar se o Brasil fosse obrigado a pagar o preço total do treinamento militar. Quase nove meses depois, o Ministério da Defesa realmente mudou grande parte do seu treinamento”.
O telegrama nota que desde 2003 a maior parte do treinamento militar brasileiro no exterior passou a ser realizado na França e no Reino Unido, mas também há exercícios na China, na Índia e na África do Sul. Segundo o telegrama, muitos militares brasileiros disseram querer voltar a se aproximar das forças americanas, mas o governo considerava “inaceitável” o aumento dos preços.
Jeitinho brasileiro
“Vocês precisam pensar fora da caixinha”, teria dito o secretário da Divisão das Nações Unidas do Itamaraty, Achiles Zaluar, ao secetário assistente americano para Assuntos Político-Militares, Lincoln Bloomfield Jr, em 14 de maio de 2004. Segundo ele, “o Brasil extraditaria (cidadãos americanos) para os EUA antes (de mandar para o) Tribunal Penal Internacional”.
Na mesma conversa, Zaluar teria explicado que o TPI tinha grande apoio no Brasil e que o governo não queria dar a impressão de que a lei internacional não se aplicava a alguns países.
“As coisas seriam diferentes se estivéssemos falando somente sobre oficiais e soldados americanos. Mas uma carta branca para todos os cidadãos americanos poderia ser prejudicial se (essa política) fosse aplicada por todos os países da Corte Penal”.
Zaluar também teria dito que o processo de extradição no Brasil é similar ao da União Européia e que o Brasil poderia oferecer “garantias adicionais” se fosse necessário.
Extradição “inimaginável”
Nos meses seguintes a pressão americana continuou intensa.
Um telegrama de 14 de julho relata um encontro entre o representante político da embaixada em Brasília com o diretor do Departamento de Organismos Internacionais do Itamaraty, Carlos Duarte. Ele teria reafirmado que o Brasil apoia fortemente a Corte Penal Internacional, mas isso não impediria “uma alternativa mutualmente aceitável” ao Artigo 98.
“Repetindo uma posição de longa data do governo brasileiro, Duarte comentou que nem ele nem seus superiores concebiam nenhuma ocasião em que o Brasil submeteria cidadãos americanos em solo brasileiro à jurisdição do Tribunal Penal Internacional”, descreve o diplomata Patrick Duddy, para quem a garantia brasileira parecia “sincera”.
Duarte teria dito ainda que “as preocupações dos EUA que levaram a essa posição são claramente compreendidas pelo governo brasileiro”. E enfatizou a vontade do Brasil de encontrar uma solução – até propôs um novo texto para o acordo.
“Ele sugeriu que o governo americano submetesse outra proposta com um texto modificado que se referisse exclusivamente aos militares e funcionários americanos em vez de a todos os cidadãos”.
As negociações por um acordo que blindasse os americanos chegaram a um final em 2005, segundo os telegramas obtidos pelo WikiLeaks. Em 28 de abril, o embaixador Antônio Guerreiro se encontrou com o secretário-assistente para Não-Proliferação de Armas, Stephen G. Rademaker. Foi taxativo, deixando clara a mudança de postura do Itamaraty.
O embaixador John Danilovich descreve que “Guerreiro educadamente mas inequivocadamente falou que o Brasil não assinaria um acordo sobre o Artigo 98 com os EUA e vê essa idéia como insolúvel”. Em diversos telegramas seguintes, a embaixada comandada por John Danilovich considera que conseguir o acordo seria muito difícil por conta da oposição do Ministério de Relações Exteriores.
Garantias de facto
Ao mesmo tempo, os EUA buscavam garantias para seus soldados que periodicamente vêm ao Brasil para realizar exercícios militares conjuntos.
“Apesar do governo brasileiro ter dado suas garantias escritas usuais para os militares participando desses exercícios, a embaixada entende que o departamento de Estado queira padronizar as proteções oferecidas”, diz umtelegrama de 24 de março de 2005.
“Devemos ressaltar que nas décadas em que os EUA e o Brasil têm colaborado em exercícios militares, o governo brsaileiro sempre respeitou todas as normas e imunidades relativas ao nosso pessoal envolvido nesses exercícios — e não temos conhecimento de nenhum incidente afetando pessoal dos EUA que o governo brasileiro não tenha resolvido prontamente em nosso benefício”.
O embaixador John Danilovich explica em seguida como deveria ser a proposta de um acordo para proteção dos militares americanos.
Entre as condições estão a isenção de taxas de importação de equipamentos e a permissão para contratação de empresas privadas pelos militares estrangeiros. Danilovich conclui que “o Brasil já concorda com um status administrativo e técnico de facto para o pessoal militar americano que participa de exercícios militares”.
Esse status, conhecido como A&T, estabelece imunidades a forças militares de jurisdição criminal e civil – desde que a contravenção tenha sido realizada durante o cumprimento do serviço militar.
Itamaraty X Defesa, de novo
A resposta do Itamaraty foi firme. Em 31 de maio de 2005, um telegrama relatou que o Brasil rejeitou o acordo proposto. O embaixador Samuel Pinheiro Guimarães teria recomendado que o Brasil não garantisse o status A&T aos militares americanos.
“Oficiais da missão americana acompanharam o progresso do tema com integrantes do Ministério da Defesa, que demonstraram forte apoio em garantir um acordo que facilitaria os exercícios militares”, descreve o telegrama, citando que o então ministro da Defesa José Alencar cogitava enviar uma carta ao chanceler Celso Amorim pedindo a proteção extra aos americanos.
No final, os militares brasileiros saíram derrotados.
No dia 30 de maio, o chefe de relações militares da embaixada foi chamado ao ministério da Defesa pelo Almirante Angelo Davena, secretário de Assuntos Políticos, Estratégicos e Internacionais.
“Davena disse que considerava uma ‘derrota pessoal’ não ter coneguido persuadir o alto escalão dos ministérios das Relações Exteriores e da Defesa a garantir status A&T, e pediu que o chefe de relações militares da embaixada transmitisse sua esperança de que os exercícios continuassem mesmo assim”.
Naquele ano, um exercício aéreo – Patriot Angel – foi cancelado, mas o exercício naval UNITAS aconteceu no dia 17 de outubro, partindo da Base Naval do Rio de Janeiro, com a participação de militares dos Estados Unidos, Espanha, Argentina e Uruguai.
Imunidades
Na prática, embora não tenhak conseguido blindagem contra o Tribunal Penal Internacional, os soldados americanos têm algumas imunidades a crimes cometidos no Brasil.
Os detalhes são revelados em uma nota diplomática enviada pelo Itamaraty em setembro de 2005 e reproduzida em um telegrama da embaixada dos EUA em Brasília de 6 de julho do ano seguinte.
Nela o Ministério de Relações Exteriores lamenta não estar de acordo com os termos exigidos pelos americanos (de garantir status A&T) por avaliar que a concessão de imunidades judiciais iria contra a legislação penal brasileira, além de ferir o princípio de equidade entre os Estados e de isonomia entre brasileiros e estrangeiros.
Mas nota explica com que há, de fato, imunidades para quaisquer militares americanos que passam pelo Brasil em exercício militar. As garantias são as mesmas em “quase meio século”.
O Brasil reconhece o princípio de extraterritorialidade de embarcações e aviões militares, explica o documento. “Nesse sentido, os crimes cometidos dentro desses navios e aviões não estão sujeitos à legislação brasileira. Da mesma forma, crimes cometidos em território brasileiro por pessoal militar estrangeiro, enquanto estiverem cumprindo suas funções, não estão sujeitos à jurisdição brasileira, mas à jurisdição do país ou nacionalidade do perpetrador”.
A nota diplomática do Itamaraty reforça, no entanto, que as cortes brasileiras têm jurisdição sobre crimes cometidos fora do exercício militar determinado. “Neste úlimo caso, as cortes brasileiras agirão independentemente de quaisquer consultas entre os dois governos, baseando-se nos princípios constitucionais que estabelecem a independência de poderes”.
O mesmo telegrama mostra a irritação do Itamaraty em relação ao lobby americano junto a militares brasileiros pela conquista da imunidade judicial.
“Finalmente, o Ministério expressa à embaixada que as comunicações sobre esse assunto, para que sejam consideradas oficiais, devem ser direcionadas ao Itamaraty, a autoridade com responsabilidades apropriadas e o órgão que gerencia privilégios e imunidades a oficias estrangeiros que visitam o país”, diz a nota diplomática.